Fábrica da Ford: leitor advogado presta esclarecimentos jurídicos

Fábrica da Ford: leitor advogado presta esclarecimentos jurídicos

O leitor Fernando Salomão, advogado, entrou em contato com o NA oferecendo-se para esclarecer dúvidas jurídicas que nossos leitores possam ter a respeito do caso da fábrica da Ford Caminhões. Ele é leitor do NA e já atuou em diversos casos relacionados com a Lei Ferrari, inclusive concedendo entrevista para o Jornal do Brasil a respeito da mesma.

Publicamos abaixo seu texto, na íntegra:

Em atenção ao requerimento de esclarecimentos jurídicos encaminhado por este renomado veículo de comunicação, encaminho abaixo nossas considerações preliminares sobre o caso do encerramento das operações da Ford Caminhões no Brasil, com possível venda de unidade produtiva (ou licenciamento de produção) para o Grupo CAOA.

O Setor Automotivo em geral ainda sofre os efeitos da profunda crise político-econômica instaurada no país nos últimos 5 anos. Percebe-se uma recuperação significativa no último biênio, mas o desempenho de vendas ainda está aquém dos tempos econômicos dourados, principalmente no ramo de caminhões.

Como resultado, há mudanças significativas nos players e estratégias de mercado, tendo como último acontecimento o anúncio de encerramento das operações realizado pela Ford Caminhões, que fechou o ano de 2018 com Market Share de aproximadamente 12% no setor de caminhões.

Nesta esteira, há especulação em relação à venda da unidade produtiva (ou licenciamento de produção) para o Grupo CAOA, não havendo confirmação, ainda, da retratada operação pelas empresas envolvidas. Do mesmo modo, não há confirmação sobre a produção de caminhões Ford e/ou Hyundai, ou sobre a intenção de manutenção da atual rede de concessionários.

Neste imbróglio, questiona-se o que acontecerá com a Rede atual de concessionários, e quais os desdobramentos jurídicos que o encerramento da Montadora Ford poderá acarretar perante sua rede de concessionários.

Cumpre esclarecer, inicialmente, que a relação entre Montadora/Fabricante de veículos (Concedentes) e distribuidores (concessionárias) é regulamentada por lei especial, a Lei nº 6.729/79, conhecida como “Lei Renato Ferrari”.

O retratado diploma legal estipula obrigações e direitos para os agentes econômicos que exploram o ramo de distribuição e comercialização de veículos automotores no território nacional. Deste modo, todas as manifestações de vontade jurídicas por parte dos agentes econômicos que exploram este ramo devem ser regidas e regulamentadas, necessariamente, pelas normas e princípios exarados pela Lei nº 6.729/79.

No dispositivo legal em questão, há expressa estipulação (art. 22, III) de que “a cessação das atividades da contraente” constitui justa causa para a resolução do contrato.

Deste modo, ocorrendo a cessação das atividades da Ford Caminhões, os concessionários farão jus às indenizações previstas na Lei 6.729/79, sem prejuízo de eventual apuração de outras indenizações aplicáveis à espécie.

Neste caso, para os concessionários com contrato de concessão de prazo indeterminado, a Montadora deverá repará-los da seguinte forma: (I) “readquirindo-lhe o estoque de veículos automotores, implementos e componentes novos, pelo preço de venda ao consumidor, vigente na data da rescisão contratual”; (ii) “comprar-lhe os equipamentos, máquinas, ferramental e instalações à concessão, pelo preço de mercado correspondente ao estado em que se encontrarem e cuja aquisição o concedente determinara ou dela tivera ciência por escrito sem lhe fazer oposição imediata e documentada, excluídos desta obrigação os imóveis do concessionário”; (iii) “pagando-lhe perdas e danos, à razão de quatro por cento do faturamento projetado para um período correspondente à soma de uma parte fixa de dezoito meses e uma variável de três meses por quinqüênio de vigência da concessão, devendo a projeção tomar por base o valor corrigido monetariamente do faturamento de bens e serviços concernentes a concessão, que o concessionário tiver realizado nos dois anos anteriores à rescisão”; e (iv) “satisfazendo-lhe outras reparações que forem eventualmente ajustadas entre o produtor e sua rede de distribuição”.

Para os concessionários com contrato de concessão de prazo determinado, estes farão jus ao recebimento da mesma indenização descrita acima, tendo apenas adequações no que tange ao cálculo da indenização e da data base para a apuração das obrigações a serem satisfeitas pela Montadora, nos termos do art. 25 da Lei 6.729/79.

O cálculo em questão constitui um passivo de grandes proporções para a Ford, considerando o número de concessionários e o alto valor a título de reparação envolvido, tendo a própria Montadora estimado um custo total de cerca de U$$ 460.000.000,00 (quatrocentos e sessenta milhões de dólares) para o encerramento das operações, segundo o site globo.

Não obstante o exposto, parte desse passivo pode ter sido incluído na eventual negociação com o Grupo CAOA, que poderá, inclusive, manter a regular produção dos caminhões Ford e aproveitar a rede de concessionários já existente.

Neste cenário reside o maior ponto de discussão jurídica sobre o tema: Concretizando-se a operação com o Grupo CAOA, com a regular manutenção de produção dos caminhões Ford (seja por licença ou aquisição da empresa), poderão os concessionários insatisfeitos com a operação pleitear a rescisão do contrato de concessão?

A análise específica dependerá da forma jurídica adotada pelas empresas para concretizar a operação em questão, sendo certo não haver, ainda, detalhes que possibilitem um estudo aprofundado sobre o tema.

Contudo, sob qualquer ângulo de análise, poder-se-á aplicar princípios contratuais ao caso concreto, em especial a boa-fé objetiva e legítima expectativa contratual. Com definição herdada do Treu und Glauben do Código Civil Alemão (Leistung nach Treu und Glauben. Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es esfordern – §242), a boa-fé objetiva pode ser caracterizada de maneira geral como “proteção à confiança e lealdade recíprocas” (vide observação no final do texto) .

Ao firmarem os contratos de concessão com a Ford Caminhões, os concessionários – que possuem diversas obrigações contratuais e legais, o que demanda investimentos de grande monta em infraestrutura e funcionários – depositaram na retratada empresa uma confiança contratual, pautada, principalmente, na imagem que a FORD MOTOR COMPANY construiu ao longo de sua história (fundada em 1903), como uma empresa de sucesso global.

Seja qual for a eventual operação adotada pela FORD/CAOA, constata-se no caso que a legítima expectativa contratual inicial dos concessionários foi frustrada – agravada, ainda, pelo impacto do anúncio do encerramento das operações na América do Sul – o que pode fundamentar um pleito de rescisão contratual por justa causa, mesmo que todas as operações sejam mantidas pela CAOA, sem qualquer alteração.

Ademais, na grande maioria das operações possíveis, optando pela manutenção da rede de concessionários, a CAOA deverá realizar aditamentos contratuais com os concessionários, que poderão discordar da operação.

Portanto, sob qualquer ângulo de análise, as implicações oriundas do encerramento das operações da FORD Caminhões no Brasil transcendem o aspecto de geração de empregos diretos e arrecadação de impostos – que, por si só, constitui uma perda social de grandes proporções – abarcando, ainda, a rede de concessionários, que deverá ser reparada para que o capital seja reinvestido no mercado brasileiro, mitigando os impactos sociais iminentes.

OBS: Conforme disposto por Anderson Schreiber, “embora nosso Código Civil não tenha definido conceitualmente a boa-fé objetiva, nem indicado parâmetros para sua conceituação, a farta produção existente em torno do tema na doutrina alemã e também portuguesa permitiu a gradativa delimitação do seu significado na experiência jurídica brasileira. Mesmo a vagueza de expressões abertas como “proteção à confiança e lealdade recíprocas” – fórmula herdada, como se sabe, do Treu und Glauben do Código Civil Alemão (BGB, §242) – que trazia inquietação à parcela mais conservadora da doutrina brasileira, foi progressivamente contornada pela construção de um elenco de deveres de conta impostos pela boa-fé, os quais resultam, por sua vez, em um conjunto de situações tipo, comportamentos inadmissíveis, condutas vedadas e outras noções aplicativas que procuram assegurar maior uniformidade no manejo da boa-fé objetiva” – Equilíbrio contratual e dever de renegociar / Anderson Schreiber – Saraiva, pág. 27).

Fernando Mancilha Salomão
Advogado Cível e Empresarial
Navarro, Botelho, Nahon & Kloh Advogados

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